Depois de mais de 200 anos, o azul e amarelo vibrante das araras-canindé retorna ao estado do Rio de Janeiro, com a vinda de quatro delas ao Parque Nacional da Tijuca, em plena metrópole carioca. As aves são o pontapé inicial do processo de reintrodução da espécie no Rio, onde o último registro delas data de 1818. As araras chegaram na última sexta-feira (6) de noite e estão em um recinto de aclimatação construído para elas dentro do parque, onde arão de quatro a seis meses em treinamento e adaptação para vida na floresta até estarem aptas à soltura.
A reintrodução das araras-canindés (Ara ararauna) é uma iniciativa do Refauna, organização que já trouxe de volta à floresta carioca cutias, jabutis e bugios. Cada uma dessas espécies – assim como as araras – cumpre um importante papel na manutenção da floresta, em especial na dispersão de sementes.
“É uma esperança de que a gente possa ter florestas mais diversas, mais ricas, que era o que tínhamos originalmente e que hoje não temos mais. Mas a gente espera de alguma forma recuperar isso para recuperar o funcionamento do ecossistema como um todo”, comemora o biólogo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e diretor executivo do Refauna, Marcelo Rheingantz.
As quatro araras, três fêmeas e um macho, vieram do Parque Três Pescadores, em Aparecida, São Paulo, onde um refúgio de aves busca reabilitar animais apreendidos – a maioria vítimas do tráfico – com foco em conservação.

Nesses dois dias as recém-chegadas já exploraram o recinto, se alimentaram bem e até entraram na tigela de água. Um começo promissor para a aclimatação das aves.
O médico-veterinário Gerson Norberto, responsável técnico do Parque Três Pescadores conta que três das araras recém-chegadas são oriundas de apreensão e vítimas de maus-tratos, reabilitadas no refúgio de Aparecida. A outra não tem origem definida, mas é uma provável entrega voluntária ao Cetas.
As quatro aram por uma bateria de exames sanitários – com testes para circovírus, bornavírus, clamídia e influenza aviária – assim como testes comportamentais, para garantir a escolha de animais mais propensos a sobreviver em vida livre e menos habituados a se aproximar de humanos.

“Observamos a capacidade de voo, o a alimento, aversão à presença humana”, detalha Gerson Norberto.
A preparação das araras levou cerca de nove meses, desde a seleção dos animais, primeiros exames, observação do comportamento das aves no recinto (etograma) até a gradual mudança da alimentação para um cardápio mais natural.
Entre as quatro recém-chegadas está um casal já formado – o que no caso das araras, devido ao seu comportamento monogâmico, significa uma dupla para vida inteira.
Outras três araras do Parque dos Três Pescadores, que incluem dois machos, já estão sob análise como potenciais candidatas para virem a seguir. “Vai depender de arem nos exames”, adianta Gerson. “Essa é a função do manejo sob cuidados humanos, apoiar a conservação”, completa, com a promessa de que as parcerias do parque, criado há menos de dois anos, estão apenas começando nesse sentido.


“O ideal era colocar no mínimo umas 40, 50 araras dentro dos próximos três anos, mas nós sabemos que é difícil de fazer isso pela demora desse processo. Mas queremos liberar o máximo possível e povoar não apenas o Parque Nacional da Tijuca, mas toda a cidade do Rio de Janeiro com araras voando pelos céus e colorindo a cidade”, pondera o diretor executivo do Refauna, Marcelo Rheingantz.
Um sonho antigo 43674w
As canindés estão na mira do Refauna desde 2018, quando a espécie foi incluída como uma das prioritárias para reintrodução no Parque Nacional da Tijuca. Entre os motivos está não apenas ser uma espécie carismática, mas seu papel ecológico importante, principalmente na relação com frutos grandes e palmeiras, para predação e dispersão dessas sementes em grandes distâncias.

Do plano até a execução, houve uma longa espera para obtenção de todas as licenças necessárias – o que foi atrasado também pela pandemia – seguida de uma igualmente longa busca por animais aptos para soltura. Comum em cativeiros, a maior dificuldade foi a liberação sanitária das araras-canindés.
“Dado o contexto que nós temos, de uma floresta urbana, onde as araras irão conviver com outros animais, tanto na cidade quanto na floresta, havia risco de transmissão de algumas doenças. Então precisávamos da garantia de que esses animais estão saudáveis”, conta Marcelo.
As quatro araras que chegaram arão ainda por uma última etapa antes da soltura: a aclimatação. A expectativa dos pesquisadores é que elas em de quatro a seis meses nesse recinto construído no interior da floresta para se adaptar aos sons, umidade, temperatura… ao mesmo tempo em que se familiarizam com os frutos que farão parte do seu cardápio na vida livre. Espécies como o jerivá, a juçara e o araçá. A expectativa é que elas possam se alimentar de 90 a até 400 espécies de plantas existentes no parque.
O período de aclimatação também será fundamental para que as araras fortaleçam a musculatura e treinem o voo para que possam percorrer grandes distâncias.
“Esperamos que a cidade seja o ponto de partida para que elas voltem a ocorrer no estado inteiro”, pontua o diretor executivo do Refauna. Desde outros fragmentos florestais até mesmo em ambientes urbanos – como é comum em cidades inseridas dentro de regiões com ocorrência de araras. “Temos o desafio desse convívio [com pessoas] e por isso que nós pretendemos trabalhar bem forte a sensibilização e conscientização. Inclusive para que as pessoas possam contribuir com o monitoramento cidadão, para acompanharmos a localização delas”, completa Marcelo.

A história abreviada das canindés no Rio 5l5b3l
No século 16, o francês Jean de Léry, um pastor calvinista que viveu junto aos indígenas tupinambás que ainda ocupavam as margens da Baía de Guanabara, descreveu a presença comum das araras-canindés. “Tem a plumagem do peito amarela como o ouro fino; o dorso, as asas e a cauda são de um belíssimo azul”, ele detalha no seu livro sobre as histórias da “França Antártica”, como era conhecida a colônia sa no Rio.
“Ele escreveu que encontrava essas aves nas árvores grandes no entorno das aldeias, que os indígenas depenavam elas regularmente para fazer ornamentos e que alguns indivíduos iam dormir na mata e outros nas residências dos indígenas. O Jean de Léry descreve até uma canção tupinambá em homenagem à arara-canindé”, conta a bióloga Lara Renzetti, coordenadora de campo do Refauna e responsável pela reintrodução das araras no parque. “No relato sabemos apenas que ele está no entorno da Guanabara, mas para arara não faz muita diferença, em termos de distribuição, onde exatamente ele estava, porque a arara voa muito”, explica.
Em seu mestrado, Lara mergulhou nos registros históricos das canindés, não apenas no Rio de Janeiro, mas em toda porção leste da Mata Atlântica, encontrando registros da ave até Santa Catarina, onde a espécie hoje está regionalmente extinta.
No estado do Rio de Janeiro, o último relato conhecido de araras-canindé data de 1818, quando o conceituado naturalista prussiano Johann Natterer coletou dois indivíduos da espécie. Um na própria cidade do Rio e outro ao que tudo indica em Niterói. Depois desse registro, não há mais nada.
Registros de araras isoladas nos céus fluminenses são atribuídos a solturas irregulares ou até mesmo animais que escaparam do cativeiro.
“O que a gente busca com a reintrodução não é a soltura de indivíduos isolados, o foco é populacional. E desde 1818 não temos indicativos de populações de araras-canindé no Rio de Janeiro”, explica a bióloga.

Tudo indica que a espécie foi extinta da região em algum momento do século 19. Ainda que não seja possível ter certeza absoluta do que causou o desaparecimento da espécie, a bióloga acredita que possa ser resultado da degradação das florestas fluminenses e a perda das grandes árvores por causa do forte desmatamento desde o início da colonização.
“A arara é uma espécie resiliente a certos distúrbios, mas tem uma coisa na qual ela é bem exigente e que talvez tenha sido isso que tornou tudo tão difícil para ela permanecer por aqui: a nidificação. A arara costuma nidificar em ocos de palmeira morta. Ela vai cavando até fazer o ninho dela ali. Ela precisa desse recurso. E a Mata Atlântica ou por um processo de secundarização que diminuiu muito a disponibilidade de palmeiras com idade suficiente para ter esse tamanho. Porque tem que ter um diâmetro maior do que 30 centímetros. E nós não temos muito isso aqui”, contextualiza Lara.
As palmeiras até existem na floresta, como o jerivá (Syagrus romanzoffiana), mas não possuem o tamanho necessário. Por isso, em paralelo com o esforço de reintrodução das canindés, o Refauna instalou quatro ninhos artificiais pela floresta que serão monitorados.
“As araras precisam de palmeiras grandes, que possam abrigar o casal e os filhotes. E não temos registros de palmeiras nessas condições aqui na floresta e para elas conseguirem se reproduzir é necessário”, explica a bióloga Luisa Paiva, pesquisadora do Refauna responsável pelas estruturas.


De olho no longo prazo, a solução é plantar mais palmeiras e esperar seu desenvolvimento. Mas os ninhos artificiais podem ser uma saída a curto prazo para garantir a reprodução e, com isso, estabelecimento dessa população de volta no Rio. “Enquanto elas estiverem no recinto, nós iremos acostumá-las ao ninho, para que quando elas encontrem as estruturas pela floresta possam identificá-las e usá-las”, esclarece Luisa.
As caixas-ninhos foram espalhadas num raio de 150 metros ao redor do recinto para facilitar que as araras os encontrem após a soltura. “E com o tempo nós pretendemos espalhar elas pela floresta e até mesmo pelo Rio de Janeiro, em especial em locais com muitas palmeiras, como o Jardim Botânico”, completa.
As araras-canindés (Ara ararauna) ocorrem amplamente pelo território brasileiro, com populações na Mata Atlântica, Amazônia, Cerrado e Pantanal, e em outros países do Panamá até a Argentina. No Brasil, a espécie é avaliada pelo ICMBio como Pouco Preocupante ao risco de extinção. Apesar disso, fatores como perda de habitat e o tráfico, pressionam a espécie.
“Depois de o Refauna conduzir uma bem-sucedida reintrodução de bugios, cutias e jabutis-tinga, agora recebemos, com muita felicidade, as araras-canindés. Elas simbolizam também voos mais altos para todas as espécies da fauna que ainda podem voltar a ocupar as nossas florestas”, pontua o gerente regional Sudeste do ICMBio, Breno Herrera.
Esse é só o começo de um novo capítulo para a Floresta da Tijuca e para os céus do Rio de Janeiro que, em breve, ganharão um colorido – e uma trilha sonora – especial.
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