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Rio com hora marcada 34m6w

Hidrelétrica pode acabar com corredeiras do Paraibuna no mais badalado local para a prática de rafting. Empresa promete liberar esporte em alguns horários.

Francisco Luiz Noel ·
18 de novembro de 2005 · 20 anos atrás

Conhecida como rafting, a travessia de corredeiras em botes infláveis corre o risco de ir por água abaixo no rio Paraibuna, na divisa entre Rio de Janeiro e Minas Gerais. As águas revoltas indispensáveis ao esporte podem ser reduzidas a remanso se entrar em funcionamento uma usina hidrelétrica projetada para aquele trecho do rio.

Os responsáveis pela Pequena Central Hidrelétrica (PCH) Santa Fé apressam-se em assegurar que não serão estraga prazeres. Segundo a BSB Energética, a aventura no Paraibuna está garantida. Mas com um porém: terá que ser com hora marcada.

O rafting vai depender de a usina liberar vazão para restituir as corredeiras do Paraibuna. Seja para competição ou lazer, os praticantes podem anotar na agenda: corredeiras só nos fins de semana e feriados, das 10h às 16h, e nas noites de lua cheia, das 22h às 2h. Fora desses horários, o jeito será esvaziar os botes e procurar outras águas, pois as que deram ao Paraibuna a fama de santuário desse esporte de aventura estarão girando as duas turbinas da PCH, que deve gerar 30 megawatts.

O rio, na divisa dos municípios de Comendador Levy Gasparian (RJ) e Santana do Deserto (MG), será contido por barragem de 4,5 metros, perto do tradicional ponto de partida dos botes, nas imediações do desativado Lanifício Boa Vista, em Levy. Pelo projeto, as águas serão divididas em duas correntes. A maior será desviada por um canal e um túnel e seguirá até o reservatório da PCH, em áreas de pasto do lado mineiro. A outra parte da água, bem menor, continuará rio abaixo após a barragem, com desnível de dois metros.

Nas horas de rafting, promete a BSB Energética, a comporta do desvio será fechada para que a corrente vertida no Paraibuna alcance vazão de 50 metros cúbicos por segundo e volte a produzir corredeiras. Enquanto os praticantes do esporte estiverem se deliciando na turbulência das águas, a geração de energia será paralisada por falta de força hidráulica. A estratégia tem nome politicamente correto: “uso compartilhado dos recursos hídricos”, nas palavras do diretor da BSB, José Guilherme Nascimento.

Ele aponta precedentes no mundo para a convivência entre reservatórios e o rafting. Como o caso do Rio Kipawa, no Canadá, onde o esporte e outras modalidades de canoagem são praticados em meio ao abre-e-fecha das comportas da barragem de Laniel, perto de Quebec. A diferença é que o sistema de barramento da água não foi feito para a geração de eletricidade, mas para regular o nível do Lago Kipawa e prevenir inundações.

Forças desiguais

Assim como separa as águas do Paraibuna de forma desigual, a PCH Santa Fé opõe forças desproporcionais em sua região de influência, que inclui Três Rios (RJ) e Chiador (MG). Mesmo com os impactos da transposição de águas, que fará o rio ir ao fundo e afetará toda a vida aquática num trecho de mais de 10 quilômetros, o projeto tem licença de instalação do Ibama desde 2003. A Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) apóia, pois a usina está enquadrada no Programa de Incentivo às Fontes Alternativas de Energia Elétrica (Proinfa).

A favor do empreendimento estão também prefeitos e vereadores, seduzidos pela oferta de empregos durante a obra e pelo aumento das receitas tributárias. Para tirar a PCH do papel, ao custo de R$ 100 milhões, a BSB espera financiamento do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). José Guilherme Nascimento diz que a represa, com 2,5 quilômetros quadrados, foi planejada para que as corredeiras não sejam varridas de vez do mapa, o que aconteceria se ela fosse feita no rio. Pelo projeto, a água será devolvida 10 quilômetros abaixo.

Do lado mais fraco da polêmica estão aficionados pelo rafting, fazendeiros, pequenos empresários e prestadores de serviços ligados à prática do esporte. Esse grupo heterogêneo se alterna entre a defesa do meio ambiente e o temor de ver minguar o ganha-pão. O rafting atrai gente ao Paraibuna o ano todo, sobretudo nas férias escolares. Em 2004, foram 15 mil pessoas. Grupos de estrangeiros também costumam aparecer no meio da semana. Oito agências operam no rio, mobilizando mais de 100 profissionais. Sem corredeiras, o negócio vai ao fundo do poço.

Pioneiro do rafting no Paraibuna e presidente da Federação Mineira de Canoagem, Edson Médici, 58 anos, o Cheleco, está entre os que prometem tentar o embargo da obra na Justiça assim que a BSB fincar a primeira estaca. “O desvio do curso do rio é crime ecológico”, acusa. Médici é dono de uma agência de turismo especializada no esporte e do mais tradicional hotel à beira das águas, em Três Rios. Do local, com desembarque para botes, avista-se o encontro do Paraibuna com o Piabanha e o Paraíba do Sul.

Mesmo que o abre-e-fecha das comportas dê certo, o destino dos peixes no trecho do Paraibuna a ser esvaziado não é nada promissor. Como muitas espécies usam as corredeiras para a piracema, resta saber se as desovas vão coincidir com as horas de rafting. Outros danos ambientais serão os comuns ao enchimento de reservatórios Brasil afora. Entre eles, o desalojamento de animais terrestres e a proliferação de vetores de doenças como a leptospirose – desequilíbrios que, na fase de audiência pública, em 2002, a BSB prometeu enfrentar.

Perda para o esporte

A campeã brasileira de rafting, Verônica Médici, 34 anos, filha do pioneiro Cheleco, completa o lamento do pai: “Vai ser uma perda irreparável para a natureza e o esporte. Além de ter sido o primeiro rio do Brasil a ter rafting, o Paraiubuna é completo. Tem corredeiras fortes o ano inteiro, ao contrário de outros, que ficam sem elas no inverno”. Na escala de dificuldades do esporte, de 1 a 6, o rio está nos níveis 3 e 4. São mais de 20 corredeiras ao longo de 21 quilômetros.

O Paraibuna foi o local de treinamento para Verônica e as demais integrantes da equipe Meninas dos Rios, que representou o Brasil no Campeonato Mundial de Rafting de 2005, realizado em outubro nas águas do Rio Quijos, Equador. Verdade que as meninas ficaram na lanterna, mas tiveram o mérito, ao lado da equipe masculina, de levar o Brasil a participar pela primeira vez do certame, promovido pela Federação Internacional de Rafting.

O rafting – palavra derivada da inglesa raft, balsa – é praticado desde o início dos anos 1980 no Brasil, que tem mais de cem rios apropriados ao esporte. Enfrentar corredeiras e saltar quedas em meio à dureza das pedras e ao risco de ir ao fundo é aventura para grupos de pelo menos seis remadores em botes infláveis, usados no mundo desde o fim dos anos 1930. Mas foi com barcos de madeira que o rafting surgiu, nos EUA, em 1869, quando o geólogo John Wesly Powell comandou expedição célebre no Rio Colorado, com direito a agem triunfal pelo Grand Canyon.

* Francisco Noel é jornalista e mora em Petrópolis (RJ). Trabalhou por dez anos no Jornal do Brasil e por três no O Dia, até partir para um vôo solo, no qual O Eco é um dos pousos.

  • Francisco Luiz Noel 5j3a4p

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