Análises

A biodiversidade não pode perder sempre 245f5m

O Judiciário não pode tratar as Unidades de Conservação apenas como espaço para a resolução de conflitos históricos de grupos humanos. Nosso patrimônio natural também precisa ser protegido

Ludmilla Aguiar · Ricardo Machado ·
4 de outubro de 2024

Estamos enfrentando uma alarmante perda de biodiversidade e as soluções propostas muitas vezes esbarram em entraves legais. Recentemente, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4) estabeleceu um acordo para assegurar a presença de comunidades indígenas das etnias Xokleng Konglui e Kaingang Konhum Mág dentro dos limites das Florestas Nacionais de São Francisco de Paula e Canela, localizadas no Rio Grande do Sul. 

A FLONA São Francisco de Paula foi criada em 1945, inicialmente como Parque Florestal e depois recategorizada para FLONA em 1968. A unidade possui 1.615 hectares. A FLONA possui um plano de manejo atualizado em 2020, onde são definidas as zonas e atividades permitidas na área. Não há menção de conflitos com etnias indígenas. 

Por sua vez, a FLONA de Canela foi criada em 1968 com uma área de 557,6 hectares, possuindo um plano de manejo elaborado em 2017, que assim como o da FLONA de São Francisco de Paula, não faz referência a conflitos com etnias indígenas na área da unidade. 

A disputa por terras no Brasil não é novidade, sendo comum acontecer entre particulares, entre particulares e o Poder Público e entre diferentes órgãos do Poder Público. Nesse último caso, existem inúmeros exemplos de sobreposição de unidades de conservação com terras indígenas. Seja uma terra indígena, seja uma unidade de conservação pública, a titularidade da terra pertencerá ao Estado e caberá ao órgão associado conduzir o tipo de gestão necessário para a área. 

No caso das unidades de conservação, a gestão deve focar em manter a biodiversidade e assegurar o direito coletivo de o a um ambiente conservado. Se é uma terra indígena, a gestão deve focar em manter a sociedade, a cultura, o estilo de vida e os recursos naturais necessários para que os direitos fundamentais de uma etnia sejam assegurados. 

O que não pode acontecer é criar um conflito legal de gestão istrativa, pois se se trata de uma terra indígena, a gestão e o domínio da terra devem ser atribuídos à Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). Se for uma unidade de conservação federal, que é o caso das FLONAs, a gestão e domínio da terra devem ser do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), órgão que tem a missão institucional de promover, cuidar e proteger a biodiversidade brasileira que ocorre nas UCs. 

A solução determinada pelo TRF4 pode trazer uma momentânea sensação apaziguadora, mas não resolve a parte legal do conflito. Supondo que os direitos fundamentais das comunidades tradicionais prevaleçam, as áreas das FLONAs que estão sobrepostas com a terra dos Xokleng Konglui e Kaingang Konhum Mág não podem ser geridas por órgãos com diferentes missões. Portanto, a solução ideal seria desafetação dessas áreas. 

Isso implica em alterar os limites das unidades de conservação por meio de uma lei federal específica para cada unidade, como estipulado no parágrafo 7o do artigo 22 da Lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza – SNUC (Lei 9985 de 18 de julho de 2000). 

Nas FLONAs é permitido que comunidades tradicionais sigam ocupando as áreas dentro dos seus limites, desde que tal ocupação seja anterior à criação da unidade e que essa situação seja regulamentada e disposta no plano de manejo (Parágrafo 2o do Artigo 17 da Lei do SNUC). Contudo, uma análise dos documentos revela que em nenhum dos planos de manejo há menção à presença dos povos indígenas agraciados pela resolução do TRF4. 

Mesmo que fosse essa a condição, uma FLONA não pode ser caracterizada como um “Território Tradicional”, uma vez que seu objetivo é conciliar a conservação da biodiversidade com a exploração sustentável dos recursos. De acordo com o Decreto 6.040 de 7 de fevereiro de 2007, um território tradicional é definido como: 

II – Territórios Tradicionais: os espaços necessários a reprodução cultural, social e econômica dos povos e comunidades tradicionais, sejam eles utilizados de forma permanente ou temporária, observado, no que diz respeito aos povos indígenas e quilombolas, respectivamente, o que dispõem os arts. 231 da Constituição e 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias e demais regulamentações;

Assumindo a validade do laudo antropológico que eventualmente reconheceria os Xokleng Konglui e Kaingang Konhum Mág como detentores do direito original de ocupação da área e uso de seus recursos, a saída mais correta seria a desafetação das áreas das FLONAs sobrepostas às terras indígenas. Além disso, a FUNAI deve ser instruída a promover e proteger os direitos desses povos indígenas. 

Embora a solução, neste caso específico, seja a apontada, a biodiversidade não pode perder sempre. O acordo mediado pelo TRF4 e assinado pelo ICMBio, representantes das etnias envolvidas e a FUNAI não previu nenhuma compensação para as unidades de conservação afetadas. Para que não houvesse prejuízo das unidades, elas deveriam ter uma área equivalente à área reivindicada pelas etnias incluída de forma compensatória. Um fato curioso é observar que são somente as unidades de conservação que se sobrepõem às terras indígenas, estando ausentes fazendeiros e outros proprietários rurais das vizinhanças, que por obra do acaso não tiveram suas áreas sobrepostas com as terras indígenas. 

Por fim, o que estamos vendo na prática é a redução das áreas protegidas públicas, em uma solução efêmera. O acordo previu que novas residências serão construídas para acomodar os indígenas, mas o que acontecerá daqui a alguns anos? As comunidades não poderão crescer e devem ficar confinadas ao espaço que eventualmente foi reconhecido neste ano? Ou podemos esperar futuras ações para ampliar as terras indígenas e aumentar a sobreposição com as unidades de conservação? 

Seria muito importante lembrar que o ICMBio e a sociedade em geral, incluindo o judiciário, devem compreender que a biodiversidade é nosso patrimônio natural. Não deve ficar em segundo plano, à mercê de interpretações diversas, com decisões tomadas sem a observação dos dispositivos legais e ainda mais de modo provisório. 

As opiniões e informações publicadas nas seções de colunas e análises são de responsabilidade de seus autores e não necessariamente representam a opinião do site ((o))eco. Buscamos nestes espaços garantir um debate diverso e frutífero sobre conservação ambiental.

  • Ludmilla Aguiar 6v1q39

    Bióloga com mestrado em Ecologia, Conservação e Manejo de Vida Silvestre pela UFMG e doutorado em Ecologia pela UnB.

  • Ricardo Machado 734y11

    Biólogo com mestrado em Ecologia, Conservação e Manejo de Vida Silvestre pela UFMG e doutorado em Ecologia pela UnB.

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Comentários 1 3h16u

  1. Francisco Livino diz:

    A gestão do ICMBio privilegia, sistematicamente, os “direitos” humanos em detrimento da conservação da biodiversidade. Uma instituição criada, nomeada, estruturada e, cada vez mais, gerida para isso. Gestores contrários às categorias de proteção integral, que trabalham ideologicamente, em detrimento da Lei que deveriam implementar.